quarta-feira, 27 de maio de 2020

"89"

 

Acordo. Dormes ainda.
Que fazer se me apetece?
Pego na tua mão
e pouso-a onde estou vivo.
Respiras. Andantino*.
As costas para mim. Não resisto.
Os dedos, leves, ensalivados,
vão à procura do grão, do seu
pólen. Vão e vêm, vou e venho.
Beijo-te no ombro. Sorris.
Dormes ainda? Subitamente
abres os olhos e abres a boca
e debruças-te sobre mim.
O dia principia.

Casimiro de Brito
in Amar a Vida Inteira


 * advérbio
    1.
    em notação musical, com execução em andamento um pouco mais ligeiro que o andante.
 

   2.
    substantivo masculino
    esse andamento.



segunda-feira, 25 de maio de 2020

Vem. Vamos arder nos braços um do outro

 

Uma fogueira é sempre uma celebração entre o ar e outra matéria.
Vem. Vamos arder nos braços um do outro. Depois, as cinzas
hão-de espalhar-se pela memória desta noite.

Joaquim Pessoa




quinta-feira, 21 de maio de 2020

Sabes, por vezees queria beijar-te

 

Sabes por vezes queria beijar-te. Sei que consentirias.
Mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos.
Foi melhor sabermos quanto nos queríamos, sem ousarmos sequer tocar nossos corpos.
Hoje tenho pena. Parto com essa ferida.
Tenho pena de não ter percorrido teu corpo como percorro os mapas,
com os dedos teria viajado em ti do pescoço às mãos,
da boca ao sexo.
Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro.
Acordado perto de ti.
As noites teriam sido de ouro e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo.

Al Berto 



 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Os nossos desejos



Os nossos desejos
são como crianças pequenas:
quanto mais lhes cedemos,
mais exigentes se tornam.

Provérbio Chinês

O que chega de repente

 

O que chega de repente, despudoradamente sorrateiro.
De mansinho ou a galope, me interessa.
O que não pede licença, invade de impulso.
Com boas ou más intenções, me desperta.
O que acha que manda, cheio de ordens.
Quase obedeço – e me instiga.
O que não tem pudores, escancaradamente prazer.
Desnuda com os olhos, veste com a boca –
e me enlouquece.
O que traz desassossego, puro atordôo.
Seduz meu espírito, me entrego.
O que me cala a boca, altamente impassível.
Explode as certezas, espatifa argumentos –
me rendo.
O que puxa pra perto, com zelo suave.
Me toca, me tem.
O que pega na mão, todo territorial,
ah sim.
Esse, me arrebata.
 
Paula Pfeifer



 

A voz dele me toca

 

Porque a voz dele me toca feito as mãos
e as mãos dele me envolvem feito fábulas.
E as duas, quando passeiam em mim
desabotoam minhas mais
mal-comportadas palavras.

Marla de Queiroz



 

E por ti ardo




Adiei-me por ti. E por ti ardo
como o velho anjo que pegou o fogo
aos quatro pontos cardeais.

Joaquim Pessoa




 

O meu mal

 

O meu mal era a grande fraqueza por ele, que eu sentia.
Eu gostava de, comigo, chamar aquilo de amor.
Mas só porque achava bonito e porque, no amor, tudo se perdoa.

Mas não era amor, era pior, eu acho que era mesmo paixão.
Nem era só um cio violento, mas passageiro,
que depois de satisfeito se desvanece.
Não era cio; e era muito mais que amor.
 
Rachel de Queiroz



 

Anseio-te pelas palavras roucas


 

Anseio-te pelas palavras roucas e cortadas, pois deixei
por ti as moradas sem vida e sem sonho. Abro-me
como o linho dos lençóis. Amarrotas-me como as
pétalas de uma flor rebelde

Lília Tavares



 

Como saberia amar-te

 

Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como nunca soube ninguém!
Morrer e todavia
amar-te mais.
E todavia
amar-te mais
e mais.
 
Pablo Neruda



 

O teu cheiro em mim


 
O teu cheiro em mim
Por muitos dias,
Tantos dias
eu amei-me
a mim mesma.

Eeva Kilpi




 

Fala baixo

 

Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito...

Ah! deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim... o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!"

Florbela Espanca 










Ternura amarrotada



Desvio dos teus ombros o lençol que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol, quando depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio, como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa
com que nós a despimos assim que estamos sós.

David Mourão Ferreira 



 



Na fronteira da pele



Na fronteira da pele não há cães polícias.
Era isso mesmo. Na fronteira da pele.
Onde eu acabo e tu começas.
Onde eu passo de pecado em pecado.
Deixo tudo e atravesso.
Passo a linha e perco a calma.
Na fronteira da pele não há polícia, não há controle.

Salman Rushdie

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