sábado, 28 de dezembro de 2019
A pele é o espelho da memória
Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tateiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através
do qual eles não procurem sair quando transpiro.
A pele é o espelho da memória.
Luís Miguel Nava
não afastes a boca da minha orelha
e tu sussurras:
- não, não afastes a boca da minha orelha.
derrama dentro dela aquilo que não consegues dizer em voz alta.
e eu digo:
- as tuas mãos queimam-me a fala.
tu sorris, dizes:
- vem, sem medo, pela aridez do meu corpo.
no fundo de mim existe um poço onde guardo a tua imagem.
é tempo de ta devolver.
é tempo de te reconheceres nela.
Al Berto
Felicidade
Felicidade
é abrir-te devagar como uma porta
rangendo murmúrios
para o meu corpo entrar.
E depois, depois voltar a fechá-la atrás de mim
e caminhar em ti em ritmos certos
para que os meus passos se confundam com o
bater do teu coração.
E depois, depois semear em ti trigo novo
e soltar papoulas nuas da minha boca
para que se misturem com o teu sangue.
E depois,
depois perder-me nesse sonho sem regresso
só com a luz dos teus olhos
a levarem notícias do mundo.
João Morgado
in Rio de Doze Águas, Doze Poetas
Morrer de amor
Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso.
Maria Teresa Horta
A boca
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)
espera o ardor
do vento
para ser ave,
e cantar.
Eugénio de Andrade
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Vamos arder nos braços um do outro
Uma fogueira é sempre uma celebração entre o ar e outra matéria.
Vem. Vamos arder nos braços um do outro. Depois, as cinzas
hão-de espalhar-se pela memória desta noite.
Joaquim Pessoa
in Ano Comum
A língua sobre a pele o arrepio
A língua sobre a pele o arrepio
Os teus dedos nas escadas do meu corpo
As lâminas do amor o fogo a espuma
A transbordar de ti na tua fuga
A palavra mordida entre os lençóis
As cinzas de outro lume à cabeceira
Da mesma esquina sempre o mesmo olhar:
Nada do que era teu vou devolver.
Alice Vieira
in Dois corpos tombando na água
A mesma pele
Temos a mesma pele,
descobri anos depois.
É isso que nos impele
a sermos um, sendo dois.
Amar é ter a mesma pele,
o resto vem depois.
(E não falo da cor,
que é indiferente no amor).
Torquato da Luz
Amantes entrelaçados
Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor noturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
Jorge de Sena
Há alguém no mundo, não sei onde
Há alguém no mundo, não sei onde,
ou antes sei,
mas prefiro esquecê-lo,
que me despe só com um olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder debaixo do duche.
Alguém com quem se torna inevitável
suar dentro de um iglu.
Amalia Bautista
Teus gestos no meu corpo
Ao contrário de ti, não quis dormir nessa noite:
os teus beijos ainda estavam todos na minha boca
e o desenho das tuas mãos na minha pele.
Eu sabia que adormecer
era deixar de sentir,
e não queria perder os teus gestos no meu corpo
um segundo que fosse.
...
Maria do Rosário Pedreira
Eu era tua poesia
És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias.
E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e,
entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste?
E me respondias, voz trêmula:
estou nascendo agora.
E a tua mão ascendia
por entre o vão das minhas pernas
e eu voltava a perguntar: onde nasceste?
E tu, quase sem voz, respondias:
estou nascendo em ti, meu amor.
Era assim que dizias.
Tu eras um poeta
Eu era a tua poesia.
Mia Couto
Te pertenço e me pertences
Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tato
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio.
Albano Martins
O amor não tem depois
Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.
Mia Couto
in "Tradutor de chuvas"
Diz-me que me amas
Diz-me que me amas, diz só uma vez.
Mesmo que seja mentira, diz-me.
Só para eu guardar o som da tua voz a dizer essa palavra.
Inês Pedrosa
Entraste na casa do meu corpo
Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
Casimiro de Brito
Sei que sou teu
Se me esfolassem agora
encontrariam o teu nome
colado num dos meus ossos.
De mim continuariam a nada entender.
Quanto a mim, sei que sou teu.
Manuel Cintra
Tudo é paixão
Assim me perguntaste,
assim te respondi:
tudo é paixão.
Como não lamber
da tua pele, o mel
que o desejo fabrica?
E como a minha boca
não recolher o néctar
da tua boca?
Ou como não sorver
das tuas mãos o pólen
da ternura?
E se, em vez de paixão,
for sexo apenas,
ou loucura?
Pode até não ser amor.
Mas, seja o que for,
não é pior.
Joaquim Pessoa
in “Ano Comum”
Tu acendes
Tu acendes a chama
do meu corpo
pões a lenha ao fundo
em sítio seco
Procuras no desejo
o ponto certo
e convocas aí
o lume certo
Se a madeira demora
a ganhar fogo
tomas-me as pernas
e deitas lento o vinho
Riscas os fósforos todos
e depois
é mais um incêndio
que adivinho
Maria Teresa Horta
in Só de amor
Fica dentro de mim
Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.
António Franco Alexandre
sábado, 14 de dezembro de 2019
Minha luxúria tem nome... o teu
minha luxúria tem nome ... o teu:
sabes gotejar-me
toda é tua ausência lunar
cato uma sombra
trago-a pra mim
Vênus não acolhe
espio-te
tão longas são as horas da demora
busco a nova flor
que escondes mas sem recato
para pétala a pétala
brotares de minha boca
Lucia De Moura Chamma
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
De amor nada mais resta
De amor nada mais resta que um outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia
O desejo que tudo arrasta
Não se sabe como acontece, nem quando.
Digo o desejo, que tudo arrasta, tudo envolve num aperto que asfixia.
A vontade de anular todo o intervalo entre as coisas no ardor dos corpos,
no misturar das línguas.
Pedro Paixão
Por detrás do pano do beijo
Em ti,
por detrás do pano do beijo,
por detrás da força do abraço,
por detrás do barulho eterno de um gemido,
há toda a coragem de nada mais haver senão tudo.
Pedro Chagas Freitas
Fui imaginada para amar
Fui imaginada para amar
amar-te meu amor
mais do que eu queria
Na arte e no mistério
de me dar
na entrega secular
de que fugia
O enigma estará
no meu ficar
entregar-me a ti na rebeldia
Iludir as asas no voar
e ir além de mim
todos os dias
Maria Teresa Horta
Os corpos das mulheres também sonham
...
Os corpos das mulheres também sonham;
sonham com outros corpos, e suspiram, transpiram, dão de si.
Por vezes, no estremecer do sangue,
as mulheres que se deitam
não se reconhecem nas mulheres que acordam.
João Morgado
In: Diário dos Imperfeitos
Há mulheres
Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol.
O meu quero-o nuvem.
Há mulheres que falam na voz do seu homem.
O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios.
No resto, quero que tenha medo e me deixe ser mulher.
Que ele seja homem em breves doses.
Que exista em mares, no ciclo das águas e dos ventos.
E, que de vez em quando, seja mulher tanto quanto eu.
As suas mãos as quero firmes quando me despir.
Mas ainda mais quero que ele me saiba vestir.
Como se eu mesma me vestisse e ele fosse a mão da minha vaidade.
Mia Couto
Deixa-me amar-te em tuas demoras
Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas
Em que meu corpo se veste de céu à tua espera
E minhas mãos, em frenesi, acendem estrelas
Para alumiar-te, ainda que ausente estejas,
Fernanda Guimarães
Traz de novo, meu amor
traz
de novo, meu amor,
a transparência da água.
dá ocupação à minha ternura vadia.
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito,
e espanta, na gruta funda de mim,
os animais que atormentam o meu sono.
Mia Couto
Por que não vens agora, que te quero
Por que não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência.
Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.
Miguel Torga
Deita-te aqui
Deita-te aqui – esta noite, dentro de mim,
está tanto frio.
Se fores capaz, cobre-me de beijos:
talvez assim eu possa esquecer para sempre
quem me matou de amor,
ou morrer de uma vez sem me lembrar.
Isso, abraça-me também:
onde os teus dedos tocarem
há uma ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares,
e finjo que essa dor é uma mentira.
Claro, o que quiseres está bem – tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve,
desde que o frio fique no laço das tuas mãos
e não regresse ao corpo que te deixo agora sepultar.
Não sentes frio, tu, dentro de mim?
Nunca nevou de madrugada no teu quarto?
Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.
Maria do Rosário Pedreira
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