sábado, 31 de outubro de 2009

Presa indiferente

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Quero-te,
como se fosses a presa indiferente,
a mais obscura das amantes.
Quero o teu rosto
de brancos cansaços,
as tuas mãos que hesitam,
cada uma das palavras
que sem querer me deste.
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Quero que me lembres
e esqueças como eu
te lembro e esqueço:
num fundo a preto e branco,
despida como a neve matinal
se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa.
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Nuno Júdice
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Não me digas quem és

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Não digas ao que vens.
Deixa-me adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou.
É longe a tua casa?
Dou-te a minha:
leio nos teus olhos o cansaço do dia
que te venceu;
e, no teu rosto, as sombras
contam-me o resto da viagem.
Anda, vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo
- é um destino sem dor e sem memória.
Tens sede?
Sobra da tarde apenas uma fatia de laranja
- morde-a na minha boca sem pedires.
Não, não me digas
quem és nem ao que vens.
Decido eu.
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Maria do Rosário Pedreira
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Horas profundas

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Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…
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Ouço as olaias rindo desgrenhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata pelas estradas…
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Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…
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Sou chama e neve branca e misteriosa…
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
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Florbela Espanca
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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aqui estoy

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Aquí estoy,
desnuda,
sobre las sábanas solitarias
de esta cama donde te deseo.
Veo mi cuerpo,
liso y rosado en el espejo,
mi cuerpo
que fue ávido territorio de tus besos;
este cuerpo lleno de recuerdos
de tu desbordada pasión
sobre el que peleaste sudorosas batallas
en largas noches de quejidos y risas
y ruidos de mis cuevas interiores.
Veo mis pechos
que acomodabas sonriendo
en la palma de tu mano,
que apretabas como pájaros pequeños
en tus jaulas de cinco barrotes,
mientras una flor se me encendía
y paraba su dura corola
contra tu carne dulce.
Veo mis piernas,
largas y lentas conocedoras de tus caricias,
que giraban rápidas y nerviosas sobre sus goznes
para abrirte el sendero de la perdición
hacia mi mismo centro,
y la suave vegetación del monte
donde urdiste sordos combates
coronados de gozo,
anunciados por descargas de fusilerías
y truenos primitivos.
Me veo y no me estoy viendo,
es un espejo de vos el que se extiende doliente
sobre esta soledad de domingo,
un espejo rosado,
un molde hueco buscando su otro hemisferio.
Llueve copiosamente
sobre mi cara
y sólo pienso en tu lejano amor
mientras cobijo
con todas mis fuerzas,
la esperanza.
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Gioconda Belli
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Esta manhã encontrei teu nome

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Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe que respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes; tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caiam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.
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Maria do Rosário Pedreira

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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Um arrepio

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Um arrepio corre as minhas pernas
quando nelas se enrosca a tua cobra
mas pouco a pouco as mãos ficam mais ternas
e o que em mim se endireita em ti se dobra.
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Por vezes se conjugam cobra e tigre
para que os anjos finalmente acordem
e o reino dos sentidos seja livre
quando as bocas se beijam e os deuses mordem.
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Eis que as tuas agulhas me magoam
e as tuas unhas gravam em minhas costas
as aves do desejo que só voam
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quando te faço tudo o que tu gostas
ainda que os prazeres por vezes doam
se acaso os dois abrimos outras portas.
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Manuel Alegre
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domingo, 25 de outubro de 2009

As tuas mãos

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As tuas mãos
compridas e serenas
de pele esticada sobre os dedos
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as tuas mãos macias
como vales
que prendem me prendem e desprendem
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as tuas mãos
sedentas
mais profundas de secretas razões
e que se afundam
nas parte mais fundas do meu corpo
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que me fazem gemer
e que me iludem
me rasgam
curam e descuram
me vestem de amor e de ventura
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Maria Teresa Horta
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sábado, 24 de outubro de 2009

Entre marés

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Como pegadas marcadas na areia
Assim ficaram os teus gestos
Marcados em mim
E o meu corpo foi
Areal onde caminhaste
Mar onde mergulhaste
E mergulhando emergiste
E no teu mergulho renasci.
E ficaram os gestos marcados
Suspensos
Gravados na areia
Entre marés.
E o meu corpo areal molhado
Aguarda a vinda do teu
Para que em mim voltes a caminhar
Para que me voltes a marcar
Para ser areia que escorre
Nos teus dedos
Para seres mar e onda
Que explode e rebenta em mim.
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Encandescente
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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O meu amado

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O meu amado apagou o candeeiro
e apagou a sua amargura no meu corpo
e despertou a sua tristeza,
derramou seus olhos no meu sonho
e me despertou.
Estendeu sua asa destroçada à minha volta
e abraçou-me.
Murmurou sua voz melodiosa ao meu ouvido,
embalando-me
sobre a ramaria das suas lágrimas misturadas,
e quando conseguiu de mim o que desejava
soltou-me
e, a meu lado, adormeceu,
enquanto a tarde seu manto recolhia
para que, de manhã, nascesse outra amargura
e nascesse
um desejo na noite que impelisse
o peito do meu amado
a apagá-lo sobre o meu corpo.
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Salah 'Abd al-Sabur
trad. de Adalberto Alves
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O homem amado

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Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?
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O que chega primeiro
e só parte por vezes
antes de eu perceber
que já tinhas voltado
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Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?
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Aquele que me beija
e me possui
me toma e me deixa
ficando a meu lado
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Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?
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Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado
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Maria Teresa Horta
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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Em um só corpo

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Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.
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Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.
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Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.
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Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.
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Manuel Alegre
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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Beija-me

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Beija-me, minha alma, doce espelho e guia,
beija-me, acaba, dá-me este contento,
e cada beijo teu engendre um cento,
sem que cesse jamais esta porfia.
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Beija-me cem mil vezes cada dia,
para que, chocando alento com alento,
saiam deste int'rior contentamento
doce suavidade e harmonia.
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Ai, boca, venturoso o que te toca!
Ai, lábios, ditoso é o que vos beija!
Acaba, vida, dá-me esse contento,
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dá-me já tal gosto com tua boca.
Beija-me, vida: tudo em mim lateja.
Aperta, morde, chupa, mas com tento.
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In Jardim de Poesias Eróticas do "Siglo de Oro"
trad. José Bento
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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ninguém me encanta como você

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Ninguém me canta
como você
ninguém me encanta
como você
nem me vê
do jeito
que só você
de que adianta
ter olhos
e não saber ver
ter voz
mas não ter o que dizer
digam o que disserem
façam o que quiserem
ninguém diz
ninguém vê
ninguém faz
como você
ninguém me canta
ninguém me encanta
como você
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Alice Ruiz
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domingo, 18 de outubro de 2009

E se eu disser que te amo

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E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfada
ou se te apraz o emprego de tais meios?
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E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
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E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
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Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.
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Ivan Junqueira
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sábado, 17 de outubro de 2009

Sonho

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É rouca a minha voz
na madrugada,
por entre os sobressaltos do sono
a chamar-te,vem.
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Não bailo o tango
nem canto o fado,
apenas ouço blues por distração.
Nunca espero
o fantasma de mim mesma
perdida de amor e falta
a visitar-me
nessa hora tardia.
Voz embaraçada
no meu sonho,
assim , intangível.
Porém punhal.
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O embalo dos braços vazios.
E a queda sem vertigem
da tua mão inexistente
pelos meus cabelos.
Da tua (ina)atenção
a velar-me carinhosamente.
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Amo-te,
murmura a tua minha voz
na alucinação da perda.
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Quero-te,
diz muito baixo o meu desespero,
nas horas em que me descuido.
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Silvia Chueire

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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Do Amor - I

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Mãos que escorrem pelo meu corpo,
fio d’água.
Rio,
corrente que me ata e desata
neste nó de desejo.
Língua que desliza,
me trespassa a alma,
faz surgir a essência.
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O amplo sentido dos gestos,
do grito incontido,
no silêncio crepuscular :
surpresa aguda.
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Este mar com que te olho,
a um tempo calmo e turbulento,
é como o que nos leva :
onda de pequenas delicadezas,
e sôfrega a lamber areia e rochas.
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Pouso a cabeça num porto:
meu pouso.
Repouso sem dúvidas,
na liberdade antes desconhecida.
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Amor inesperado esse,
sem medo,
sem fantasmas,
sem degredo.
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Silvia Chueire

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Em ondas

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Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.
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É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia de tão leve.
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O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
Ímpeto que não ache um abandono.
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Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
somos a maré alta de quem ama.
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Por fim o sono calmo que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansando no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.
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Rosa Lobato Faria
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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Os gestos dele

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Quando ele me beijou a boca
gemi de espanto e demora,
mas céus! Ele continuou,
e eu gritei: eram desejos de outrora.
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Quando ele me enlaçou,
fiz de seus braços os trópicos,
e se deles me desvencilhei,
na certa, é porque estive louca.
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Quando ele murmurou,
loucuras em minha pele,
Deus bem me compreendeu,
e apagou o pecado da terra.
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E quando sua boca atrevida,
torturou por minhas coxas,
maciez e luzes de alcova,
surgiram, porque assim eu quis.
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Depois que ele me bebeu,
quem se fortaleceu fui eu.
Galopando atravessei os espelhos,
e, no céu, desde então, me postei.
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É por isso que as estrelas,
de quando me ponho a cantar,
tantos, e tantos versos de amar,
nele, só nele, é que podem desaguar.
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Cissa de Oliveira

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terça-feira, 13 de outubro de 2009

O corpo não espera

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O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
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Jorge de Sena
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segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tormentas

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Amor com tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
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Amor como relâmpago e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
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Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
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E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
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Astrid Cabral
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domingo, 11 de outubro de 2009

You soy la amada

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Yo soy la amada, amante, soy la amada:
voy andando las horas que separan
mi cuerpo de tu cuerpo
y restañando las frágiles heridas
de huellas que volaron con tu nombre.
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Yo soy la amada, amante, soy la amada:
la que brotó salvaje entre tu trigo
y lo tiñó de púrpura,
la que sin darse cuenta
iluminó de pronto tu paisaje,
la que acudió a tu llanto
y en su aljibe
atesoró tus lágrimas.
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Yo soy la amada, amante, soy la amada:
la que en silencio mira.
La que te espera.
La que teje sus sueños con tu vida.
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Luzmaría Jiménez Faro
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sábado, 10 de outubro de 2009

Se me chamas

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Se quiseres, amor, que eu procure
pelas marcações da tua vida,
chama-me.
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Se me chamas, amor, eu vou,
e às portas do teu palácio
eu deixo o esvoaçar das vestes,
os dias passados,
as miragens, os parâmetros,
e entro só com a leveza
das plumas que imaginaste,
ainda ontem.
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Se me chamas, amor,
eu não sei ser pouco intensa,
então, deita-te aqui,
na rede quente dos poemas
que nascem pra ti.
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Recosta a cabeça na entrelinha
que mais te aprouver -
são tuas – como dos lagos puros
são os raios de todas as luzes.
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Fecha os olhos e vê,
enquanto eu percorro as marcações
antigas e as novas do teu coração,
dizendo-te acerca de tudo.
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Se me chamas, amor,
deixa que eu mergulhe o apressado
dos teus rios, tocando de leve
os seixos doces e afogueados
das alegrias, e das paixões adormecidas
no recanto que lhes é devido,
e diz se eu devo acordá-las,
ou apenas transmitir-te
o frisson que até hoje
elas murmuram na lembrança,
e deixa que eu deslize os dedos pelos teus cabelos
e sonhe por intermináveis segundos
com a tua boca, e com tudo o que perdi.
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Se me chamas, amor,
deixa que eu desvende o emaranhado
onde se escondem as tuas dores,
reais e imaginárias,
para que eu as traga ao sol
onde as enfrentarás
com as armas da doçura que é tua,
e deixa que eu te envolva com o escudo
frágil dos meus braços
– é tudo o que tenho - e que eu desperte
em ti a ternura que contém a resposta:
arde ainda o teu coração.
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Se nos abraçarmos assim,
seremos anjos alados, libertos
da maldade que espreita nas esquinas
e no sombreado dos rostos
dos pequenos de espírito,
e resistiremos
com a força das rochas que descansam
no azul silencioso dos mares,
enquanto as espumas
arrebentam-se nas praias.
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Aperta as minhas mãos
guarda-me no aconchego
de algum canto do teu coração
para eu pensar que é ilimitado
o céu onde só sei voar contigo,
e lê com lentes bem claras
mais esta marcação,
amor.
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Cissa de Oliveira
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quando sinto o teu calor

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Quando sinto de noite
o teu calor dormente
e devagar
digo: cedro azul,
terra vegetal,
ou só
amor, amor;
quando te acaricio
e devagar
para que não despertes
tomo na mão direita
as duas fontes, iguais, da vida,
procuro a nascente
e adormeço
nela essa mão depositando.
.
António Osório
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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um poema entre nós dois

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O meu mundo tem estado à tua espera;
mas não há flores nas jarras,
nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas.
Sei que um poema se escreveria entre nós dois;
mas não comprei o vinho,
não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.
.
Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –
estalam-me brasas no peito, desvairadas,
e respiro com a violência de um incêndio;
mas parto antes de saber como seria.
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Não me perguntes
porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos
.
– Deus tem as mãos grandes.
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Maria do Rosário Pedreira
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Distância

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Tão curta a distância
- de um coração para outro.
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Se me sinto a mim, aos meus desejos,
porque não a ti e os teus?
Milhões de olhos buscam
e não conseguem encontrar o outro.
Cada um evita o outro,
como aranhas famintas.
Quem não carrega no seu seio
amor, gratidão a outros?
Deixa-me confessar abertamente
o meu desejo por ti!
E como uma ponte abarcando mil terras
que te separam de mim,
deixa-me, eu próprio,
deitar-me para te alcançar.
.
Abraham Joshua Heschel
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terça-feira, 6 de outubro de 2009

Madrugada rubra

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Amar é entregar.
Tudo te dou.
Não porque tu me pedes
porque quero.
Pois te sei livre em mim
portanto espero
em ti livre perder-me:
aqui estou.
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Quero o grito o encanto
o mel o vôo
oceano e deserto
reverbero
sob o toque das mãos tuas:
bolero
só audível a mim
quando em ti sou.
.
Mais que flor ofertada
aberta ao falo
sou suor sou galope
e contra-canto
o teu corpo no meu corpo
abrilhanto
e em mil sóis
saberei multiplicá-lo:
gozo imenso
eterniza a cavalgada
e enrubesce
de inveja a madrugada.
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Márcia Maia
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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sonhos

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Sonharei, no teu seio calmo,
O sonho invisível do cego de nascença.
Dormirei, no teu cerrar de pálpebras,
Como um peixe desliza entre os ramos de árvore
Reflectidos na água.
.
Dormirei, nas tuas mãos pousadas no meu corpo,
O desejo de te acariciar sem perigo
- não vá tirar-te escamas, borboleta presa.
.
Dormirei, no teu sexo, a solidão do meu
Ao existir para que eu pense em ti.
.
Dormirei, na tua vida, a teimosia humana
De um sentido universal para as coisas connosco.
E se, depois, meu amor, formos estéreis,
Se a demora do tempo tiver tido um gesto abandonado,
E a morte, à nossa volta, um moleiro sem trigo,
O mundo que vier inveja-nos
E o nosso espírito há-de perdoar-nos.
.
Jorge de Sena
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domingo, 4 de outubro de 2009

Pulsar

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Regressar ao corpo, entrar nele
sem receio da insurreição da carne.
Nenhuma boca é fria,
mesmo quando atravessou
o inverno.
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Uma boca é imortal
sobre outra boca: diamante
aceso, estrela aberta
quando a luz irrompe, invade
ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.
Despertos, puros no seu pulsar,
aís os tens: esplendorosos,
duros.
.
Eugénio de Andrade
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quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O teu desejo

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Segue-me noite e dia o teu desejo!...
Oiço a tua voz rúbida e cantante
suplicar-me a carícia do meu beijo,
numa teima exigente e perturbante!
E o meu corpo vencido, dominado,
vai tombar doloroso, inconsciente,
sobre a lembrança morna do passado
— e fica-se a sonhar...
perdidamente!
.
Judith Teixeira
.

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